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Rafael, escravo do destino e dos homens no interior do Brasil


23-09-2016 21:59:34
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A vida de Rafael Ferreira da Silva renderia um filme. Aos 12 anos de idade, ainda um menino franzino, teve que começar a trabalhar por causa das dificuldades financeiras do pai. Rafael morava na zona rural de Jauru, em Mato Grosso, e arranjou um serviço em uma fazenda longe de casa. Comia arroz e feijão e bebia água junto com os bois.

 


A vida de Rafael Ferreira da Silva renderia um filme. Aos 12 anos de idade, ainda um menino franzino, teve que começar a trabalhar por causa das dificuldades financeiras do pai. Rafael morava na zona rural de Jauru, em Mato Grosso, e arranjou um serviço em uma fazenda longe de casa. Lá, ele era “bombeiro” – expressão usada para se referir aos que levavam água para os trabalhadores braçais do roçado.

Debaixo de um sol de 40 graus e enfrentando a seca que atinge o estado durante boa parte do ano, o rapaz trabalhava o dia todo para ganhar uma diária de cinco reais. À noite, dormia em um barraco de lona no meio do mato. Se o tempo virasse, tomava chuva e passava frio.

Comia o que recebia: arroz, feijão e acompanhamento. A água ele tirava de um córrego onde bois e outros animais também bebiam. Não tinha banheiro. O pior de tudo é que recebera o aviso de que estava endividado e não poderia ir embora da fazenda quando quisesse, tendo que trabalhar mais e mais para pagar o que devia.

Resgate lembra outros 50 mil

Rafael foi resgatado desse cenário de trabalho forçado aos 17 anos, em 2008, durante uma operação realizada pelo Ministério do Trabalho. De 1995 a 2015, o organismo libertou mais de 50 mil trabalhadores de situações análogas à escravidão.

A cena dos fiscais chegando à fazenda, segundo o jovem, também parecia a de um filme, e o resgate mudou para sempre o enredo da narrativa.

“A gente levava uma vida muito simples. Meu pai separou da mãe e eu fiquei com ele, um homem rígido, que não abraçava e beijava o filho. Ele me mandou ir trabalhar porque era preciso, os escravizados são fracos de situação e, por isso, forçados a trabalhar, trabalhar, trabalhar”, conta Rafael.

Desde criança, todo o dinheiro que conseguia juntar ele usava para comprar material de escola, lápis, borracha e caderno. “Quando eu conseguia o material, ia assistir aula. Depois, o material acabava e eu ficava só no meio do mato mesmo, mas só pensando em voltar para a escola de novo”, lembra.

Após escravidão o aprendizado

Após ser resgatado, além de atendimento psicossocial, Rafael passou por cursos de qualificação, como de pintor, operador de máquina agrícola e açougueiro, oferecidos pelo projeto Ação Integrada.

“Quando fiz esses cursos, percebi que a gente, para trabalhar, pode usar a força, mas também o cérebro. Na aula de operador de máquinas agrícolas, conhecendo aqueles tratores de um milhão de reais, de alta tecnologia, vi que entendendo daquilo eu não precisava colocar tanta força, mas sim estratégia, usar a cabeça.”

Após o resgate, Rafael trabalhou em supermercado, fazenda e frigorífico, aproveitando o que aprendeu nos cursos até chegar ao seu cargo atual.

Hoje, aos 24 anos, ele é corretor de imóveis e estudante universitário em Várzea Grande, onde reside. “Faço engenharia civil e pago com meu dinheiro”, orgulha-se. Para o rapaz, que atualmente está casado, toda a adversidade que enfrentou serviu para consolidar uma filosofia: “Quem manda no meu destino sou eu”.

Na opinião dele, se o Brasil investisse em educação, crianças não seriam escravizadas, e os adultos, ao invés de levados a situações degradantes, teriam outras oportunidades de trabalho e renda, com mais respeito e dignidade.

Rafael tem certeza de que o filme da sua vida não chegou ao final: “Ainda sou uma criança escrevendo um livro que ainda não terminou”.

Nova chance

Rafael é um dos mais de 700 beneficiados pelo projeto Ação Integrada, em Mato Grosso. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) apoia a iniciativa.

“A história de Rafael demonstra que o projeto Ação Integrada não só dá uma oportunidade de qualificação profissional e escolarização aos seus beneficiários, mas, acima de tudo, tenta garantir que este ser humano consiga sonhar novamente, planejar e ter a capacidade de superar a falta de oportunidades e dificuldades que sempre caracterizam seu ambiente de vida”, destaca o oficial de projeto da agência da ONU, Antonio Carlos Mello.

O Ação Integrada é desenvolvido pelo Ministério Público do Trabalho (MPT/MT), a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE-MT) e a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), com o apoio técnico e institucional da OIT, desde 2009.

Segundo o procurador do MPT, Thiago Gurjão, “o projeto surgiu de um esforço de várias instituições que se engajam na luta contra o trabalho escravo para tentar oferecer alternativas de emergência no enfrentamento desse problema, sobretudo em relação à prevenção e à assistência às vítimas”.

Resgatando escravos para a vida

O coordenador regional de Mato Grosso do Ação Integrada, Pablo de Oliveira, explica que, quando um resgate é realizado, os agentes da programa vão até o local para identificar os trabalhadores e encaminhá-los para o atendimento.

Na abordagem, eles são entrevistados e é elaborado um questionário socioeconômico para identificar o perfil de cada um. Oliveira detalha que as informações coletadas são orientadas pelas expectativas do trabalhador. “Normalmente, a primeira pergunta que fazemos é: qual é o seu sonho? Se ele fala que tem vontade de mexer com tratores, nós o encaminhamos para um curso de maquinário, por exemplo”, explicou.

O projeto também paga uma ajuda de custo para que o trabalhador consiga se manter durante o período das aulas. “Em outros casos, as pessoas já começam a trabalhar e, paralelamente, fazem o curso”, acrescentou Oliveira.

Além disso, “há uma preocupação de elevar o nível de escolaridade dos regressos. O projeto tenta inserir todos os beneficiários no sistema de Ensino de Jovens e Adultos (EJA) da Secretaria estadual de Educação, Esporte e Lazer (Seduc-MT)”, ressaltou o coordenador.

O sucesso do Ação Integrada no Mato Grosso fez com que a iniciativa fosse replicada pelo Brasil: na Bahia, no Rio de Janeiro e no Ceará. Existe também uma iniciativa regional chamada Rede Ação Integrada de Combate à Escravidão (RAICE) e que engloba os estados do Piauí, Tocantins, Pará e Maranhão para fortalecer as comunidades de origem das vítimas do trabalho escravo.

 

Servidão por dívida é

a maneira mais comum

da escravidão moderna

 

A servidão por dívida continua sendo uma das formas mais comuns de escravidão moderna em todas as regiões do mundo, apesar de ser proibida pelo direito internacional e pela maioria das jurisdições nacionais, advertiu na semana passada (15) a relatora especial das Nações Unidas sobre formas contemporâneas de escravidão, Urmila Bhoola.

“Mesmo ocorrendo em todo o mundo, em diversos setores da economia, e sendo uma forma de escravidão, com raízes históricas profundas, a servidão por dívida não é universalmente compreendida”, disse Bhoola, durante a apresentação de seu último relatório ao Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Atualmente, não há uma estimativa confiável a respeito do número de pessoas escravizadas nessa condição em todo o mundo.

No entanto, a especialista apontou para uma estimativa de 21 milhões de pessoas sofrendo com o trabalho forçado, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

“Essa conjuntura fornece uma indicação da extensão do trabalho forçado, dada a estreita relação entre os dois fenômenos que afetam as vítimas de várias formas de discriminação.”

Tudo comerça por um empréstimo

A pobreza, a falta de alternativas econômicas, o analfabetismo e a discriminação que as pessoas pertencentes a grupos minoritários sofrem, fazem com que acabem solicitando um empréstimo ou adiantamento de empregadores ou recrutadores, a fim de satisfazer as suas necessidades básicas. Em troca, essas pessoas oferecem o próprio trabalho ou o trabalho familiar.

“Os pobres e marginalizados, os migrantes, traficados ou discriminados – incluindo mulheres, crianças, povos indígenas e pessoas de castas afetadas em suas comunidades – são os mais impactados, e acabam entrando nessa forma de escravidão por não terem como pagar as suas dívidas”, observou a especialista em direitos humanos.

De acordo Bhoola, as pessoas em servidão por dívida muitas vezes trabalham sem receber salário ou, por vezes, recebem rendimentos inferiores ao mínimo adequado, a fim de pagar as dívidas contraídas ou adiantamentos recebidos – mesmo quando o valor do trabalho realizado excede o montante de suas dívidas.

Ciclo de pobreza e exploração

Segundo a relatora especial, trabalhadores forçados são frequentemente submetidos a diferentes formas de abuso, incluindo longas horas de trabalho, violência física e violência psicológica.

Alguns dos fatores que empurram as pessoas e as famílias para esse tipo de escravidão incluem a desigualdade estrutural e sistêmica, a pobreza, a discriminação e a migração laboral precária. Marcos regulatórios financeiros fracos ou inexistentes, a falta de acesso à justiça, a falta de aplicação da lei e governança, bem como a corrupção são alguns dos fatores que impedem a liberação do trabalho forçado e a reabilitação de famílias e indivíduos presos neste ciclo de pobreza.

Em seu relatório, Bhoola pede que mais seja feito para compreender a servidão por dívida, e descreve o modo como os Estados-membros da ONU devem tomar uma abordagem variada com base nos direitos humanos universais, a fim de erradicar o fenômeno.

“Para erradicar eficazmente e prevenir essa prática, os Estados devem desenvolver programas abrangentes e integrados de ação com base nas normas internacionais de direitos humanos, que atendam às necessidades das pessoas afetadas e eliminam as causas de tais práticas”, ressaltou.

“As abordagens devem ser multidisciplinares e incluir medidas legislativas e políticas que sejam eficazes, devidamente aplicadas e que forneçam proteção, prevenção e reparação de violações de direitos”, destacou a especialista no relatório.

 

 

 

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